quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

José de Arimatéia

O menino de pouca idade contava o dinheiro que havia recebido dos gambé lá da praça. Ele fazia uns serviçinhos para eles de vez em quando, engraxava umas botas aqui, comprava umas coxinhas ali, e os cara era legal, de vez em quando até sobrava uns salgado pra mim, gostoso, melhor do que a farinha que a mãe fazia com feijão cheio de bicho. O dinheiro já não tava dando para nem compra comida, e faze esses serviço pros gambés é tudo que eu tenho. Sabe? A praça tá bonita... Tem uns pessoal morando aqui, mas minha mãe não quer deixar o barraquinho lá na zona leste, e eu, tenho que vim todo dia pra esses canto aqui faze esses serviçinho, por que eu não podia se transformar-se num douto como aqueles que eu vejo passarem da aqui, com uma roupa limpa e óculos escuros? Nossa, era tão chique! Uma vez ele pediu par o moço comprá um pra ele, mas o moço comprou um milho e um pedaço de abacaxi. Tava bem gostoso, e eu tava com fome, mas eu queria mesmo o óculos, sabe? Prá ver se ficava inteligente, se aprendia fala, se aprendia a sê mais importante, se aprendia a ser gente, se ficava mais humano. Que é isso tudio que eu tou falando? Tem uma dona ali olhando para uma pomba e para mim. Que que ela quer cantando para a pomba. Só pode ser louca. As roupas roxas brilhavam ao som da sua voz. O menino, andava para lá e para cá a procura do que fazer quando surgiu na sua mente a idéia de que ele poderia pegar alguma coisa daquela mulher para comprar os óculos escuros. Ele nunca pensou que poderia roubar alguém, mas aquela mulher não era nem ser humano, aquele cabelo sem cor, a pele sem vida,. Ela era mais parecida com as barata que rodeava o barraco de vez em quando. É isso, se eu roubá uma barata, eu não tava robando, eu só tava fazendo um gosto meu. Mas como eu posso fazê isso se ela não para de fica com aquela música idiota para a pomba. Ela fica dizendo umas coisa sem sentido, e volta a canta um tal de cálice, de vinho tinto de sangue. Que que é tinto? Não importa, eu vou ficá olhando essa velha até que ela para de canta. Ela tá me olhando. Será que reparou que eu notei que ela é uma fumaça que deixa a praça mais feia, agora que arrumaru a praça? Ela fechou o olho, e ele correu. Correu mais do que uma bala a procura do peito de um bandido sujo, ou da cabeça de um menino inocente. Ele pegou a bolsa e correu, por toda Benjamin Constant em direção a faculdade de direito. Ahe, agora vou comprá. Quando ele abriu a bolsa, não tinha nada, só um bilhetinho, que ele não conseguiu ler porque não sabia ler. Ele chorou, chorou chorou muito, chorou mais que tudo e largou a bolsa preta com florzinhas brancas lá mesmo. Quando voltou para praça, a mulher já não estava mais lá, só o aroma forte de naftalina. A mulher, andou até o ponto de ônibus e tomou o Praça Silvio Romero em direção a sua casa no Tatuapé. No ônibus ela se lembrava que a única coisa que a deixava desumana era aquele bilhete roubado, e escrito em 1972 por seu primeiro e único namorado, José: “‘Tu és divina e graciosa, estátua majestosa, do amor, por Deus esculturada’, mas eu não posso casar-me contigo, pois Maria, minha vizinha, está esperando meu filho e preciso cumprir com o meu dever. Seu, José”. Ela ainda amava o menino, e a pomba, e a humanidade dos desumanos.

Um comentário:

The tone disse...

Nossa Vivs!
Tive uma sensação de déjà vu... li e fiquei pensando, onde foi que já li algo muito parecido com isso? Daí, me lembrei que uma vez você tinha me mandado estes contos pra eu ler e comentar. Acho que foi um dos seus primeiros experimentos, confere? Acho que na época mandei um email comentando o quão interessantes eles era, um verdadeiro show de observação do outro, de se colocar no lugar daquele que não é você, ainda que sejamos apenas Um. Acho que hoje em dia seus textos estão mais pungentes, mas estes merecem aplauso tanto quanto...