quarta-feira, 14 de março de 2007

Universo


A garota saiu mais cedo do serviço, precisava chegar cedo. Cedo aonde? Precisava descansar? Por quê? Precisava viver. Qual é o motivo? Precisava ser feliz. Mais essa agora! Quem inventou isso. Mitos são inventados para fazer o mundo cambalear no universo e, como um cão sem dono no asfalto, repousar a sombra da lua que cobre o sol. Milhões e milhões de universos, galáxias, planetas, e eu aqui nessa terra? Com subdesenvolvimento, com hipocrisia, com dor e doença. Com feto e fúria. Sem amor e carinho. A desunião faz parte. Parte do que mesmo? Corre para pegar o ônibus que vai para o Pq. Dom Pedro II. Já estou atrasada. Para que mesmo? Não lembrava, as sombras das pessoas que habitavam os assentos, e a sombra dos indivíduos que estavam de pé fazia com que todos parecessem uma pintura impressionistas. Manchas, gotas, pingos, supérfluos, inquietos e infelizes. Por que eles tinham de estar aqui? Precisavam estar em um outro lugar, viver uma nova vida, saber o gosto bom de um livro. E livro lá se come. Come nada! Por que precisamos dele então. Ah, vagou um assento. Ufa, que bom sentar um pouco, mas eu não deveria ceder meu lugar para o senhor que está parado ai do lado. Quer sentar, fica tranqüila. Tá bom. Então, está tudo acontecendo, a história do universo não é como conhecemos, deve haver outros planos, outras dimensões, outras camadas de energia que ultrapassam esses míseros átomos que nos ensinaram. Ah, tá bom. Ah, para de viajar. Putz, o trânsito tá paradaço. Queria um chocolate para sentir o gosto amargo da vida. Que vida é essa? Essa viagem, essa coisa absurda. Nossa, um leão marinho, ele está cruzando a Consolação. Que ele quer aqui? Ele é até que bonitinho. Como ele está em frente à igreja despedaçada pela reforma, vai ver que ele apareceu para nos lembrar da existência das coisas boas. Mas o que é bom mesmo? Como definir a essência de uma coisa tão vaga? O leão vai embora, vou chamá-lo de Shakespeare: um ser que é e não é ao mesmo tempo. Uma perfídia sem ser mulher. Logo mais apareceu um rinoceronte na frente do teatro municipal. Que coisa macabra. Esse nos lembra da cultura, e como é chato viver sem as notas repetitivas de Mozart, Chopin... Nossa, a esse darei o nome de Ludwig. Gostei. E por último, em frente à faculdade de direito, tem um minúsculo rato. Sujo, preto, desbotado. Repugnante, desprezível e mau cheiroso. Vai embora que você me enoja. Que bom. O terminal não está tão cheio. A moça desembarca no ônibus de trás. Nem vi o nome desse. Ela vai embora, sem notar que, nas costas, um começo de rabo estava nascendo. Um rabo fino e nojento.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Pequena Rafaela




Enquanto olhava o movimento medonho da Avenida Rebouças, a moça de cabelos compridos pensava em sua filha. A pequena Rafaela já estava com um ano e meio, já ela, no auge de sua experiência, gozava trinta e sete anos de vida. Bem vividos, curti muito antes de ter os meus filhos! Ela falava para uma moça que sentava ao seu lado no ônibus.

A menina, com dezessete anos e grávida de seu namorado, havia perdido mais de quatro horas de serviço para poder ir ao Hospital das Clínicas fazer seus exames de rotina. Eles vão me descontar essas horas, mas depois compenso trabalhando mais.

A pequena Rafaela não consegue se aquietar no banco. Ela queria brincar, para isso havia sua tia, que ia de um lugar ao outro com ela nos braços, e cantava: Com quem será, com quem será, com quem será que a Rafaela vai casar? Vai depender, vai depender, vai depender se o Luiz vai querer. Quem é Luiz? Francamente, não sei.

Sincronicidades múltiplas começam a acontecer: o barulho da criança chorando, o trânsito quente sendo dominado pela presença ausente de um inseto que parte para sua hibernação, o livro que não para de falar daquelas mulheres de Cabul, as moças suando à luz do resto de luz que cobriu o dia. Essas multiplicidades descontentes entram no fluxo do sonho e desgastam a falta de coração.

Será que a pequena Rafaela sabia para aonde estava indo quando brincava de "Cadê o nenê?" com aquela moça estranha a sua frente: ela tem um vestido vermelho indiano e lê um livro de capa azul. A moça está incomodada, quer ler seu livro, quer prestar atenção na conversa, quer entender o mundo, mas esse, toda vez que ela o entende, muda, se fragmenta e não se reconstrói.

O ônibus estanca na travessa da Paulista, e as moças se calam. O que resta são os gritos de um moço para que o motorista abra as portas. Milhares de pessoas caminham, apressadas, sem paciência. Horas depois, a do vestido indiano desce na rua Direita, sobe até a Praça da Sé, toma o Terminal Vila Prudente. Justamente, depois de um dia exaustivo, em que os cacos de sol feriram os seus olhos, uma chuva forte cobre seu rosto. O momento de beleza e epifania, aquele que podería mudar o curso de uma vida, é adiado. Nada.

A moça está em casa e escreve uma postagem no seu blog. Nesse momento ela se pergunta onde estaria a pequena Rafaela. Seria essa menina um crime? Uma solução?

Realmente não sei. Somente que a cor negra de sua pele, juntamente com a cor azul dos olhos de sua tia, juntamente com a cor branca da menina grávida, mais a cor laranja do sol, mais a cor vermelha do vestido, mais a cor de ouro do amor, tudo isso, podem ser resquícios de um sonho que pode ser novamente construído, talvez como aquela flor no asfalto... Dorme Drummond.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Resíduos de Sonhos


No dia de hoje tive uma idéia: recuperar um sonho que foi esquecido já há muito tempo.
Em tempos que o esquecimento é uma constante - queremos e precisamos nos esquecer do tirano que nos visita, da dor que nos causa a exclusão, da nossa falta de liberdade, da nossa falta de direito, da nossa falta de deveres, da nossa crueldade, do nosso amor, da nossa verdade, e da nossa tão grande mentira - shwiiiiiiiiii cataploft duirrrrrr - quero e preciso lembrar-me de sonhos que podem ter feito parte de inúmeras mentes.

O impossível do meu sonho, eu quero lembrar, mas já esqueci. Por que não consigo lembrar, tsk, tsk, cataploft.

Talvez porque ainda desejo vou lembrar-me, vou recuperar um resíduo de sonho que já não tem lugar em uma vida vazia que se desfaz e se reconstrói em momentos de pálido prazer. Prazer do que? Viver! Viver o que? O que dói, o que não nos faz esquecer que a história dói, e mesmo assim, pode haver o sorriso. O sorriso é um crime, e dos piores. Matar? Morremos todos os dias. Mentir? Vivemos uma ideologia. Cantar? A música desafinou, não há mais instrumentos.

Mas vou recuperar esse resíduo de sonho, talvez com uma ajudinha... ainda vou. Como "Clair de Lune" procura a "Sonata ao Luar" e a "Fantasia Improviso", como o "Revolucionário" busca a guerra.