sábado, 22 de dezembro de 2007

Feliz Natal


A raiva escorreu da boca da mulher quando parou no meio da Avenida Paulista, bem na época de Natal, e viu um palco montado. No meio daquela barulheira horrorosa, a pequena orquestra, acompanhada por três tenores medíocres, tocavam "Granada". É patética a cena: há uma farmácia atrás de mim, na minha frente, uma fileira de pessoas correndo: vejo um homem gordinho passando com uma parrafa de vinho, depois um velho de cabelos longos e um maço de flores coloridas, um grupinho de adolecentes góticos vestidos de preto e cantando a melodia, uma garota que estudou comigo no colegial, tudo encadeado no fluxo do movimento. Mas não acabou, atrás dessa fileira está a de carros, ônibus, taxis, caminhões e microônibus, todos lotatos de pessoas e sonhos de consumo, de amor, de liberdade. Atrás dessa fileira, havia outra, empanturrada de gente observando o palco: eles conversavam, riam e pareciam felizes, provavelmente zombavam de sua desgraça, como diria o ditado, não é possível ser feliz e sábio. Acima dessa massa multiforme colorida, estava o palco: esqueça todas as cenas de orquestra que você já viu na vida, essa é diferente! Os músicos zombam de seus erros, não se concentram e desafinam sem se preocuparem. Que absurdo. Só posso ficar com raiva dessa pouca vergonha. O que, o que você quer? Um velhinho estava ao seu lado perguntando se ela gostava de música napolitana. Não gosto, gosto de boa música. Isso é ruído, esse monte de veículos passando, esse povo conversando, isso não é maneira de se comportar em concerto. Isso não é jeito! O velhinho transmutou-se em um lindo cavalo e começou a correr para lá e para cá. Os carros sumiram, e uma mancha preta, como de gordura, sugou todos que estavam ali. Só sobrou ela ali: nada de pessoas, nada de carros, só ela e o cavalo. Ele tomou a garota raivosa em seus ombros e a levou para Terra do Nunca. E lá, viveram felizes para sempre. Talvez esse seja um conto de Natal, talvez esse seja o conto mais absurdo que ouvirás, ou lerás em sua vida. Olhe, por um instante, o absurdo de sua vida. Novamente, indago, porque não há mais necessidade de esconder-me por trás de uma máscara literária, o porquê não fazemos nada? Por que vivemos essa vida sonho pensando que tudo acaba bem sempre? Você pode achar que ela está feliz, com seu cavalo, na Terra do Nunca... a realidade é que ela desapontou um homem cansando, empurrou seu corpo até em casa, comeu, dormiu e sonhou. Uma hora dessas, deve estar almoçando ou tomando café, odiando o que fizeram com sua música, esperando que o mundo, São Paulo e a Avenida Paulista melhorem. A verdade está no MASP, mais precisamente, nas telas roubadas.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Um Albatroz observou tudo


Quando Roseli chegou em seu apartamento, se deparou com uma criança parada em sua porta. Ele era baixo, muito magro para a idade e tinha olhos de trabalhador cansado. Ao invés de falar, o garoto se agacha e aponta para a porta da frente. Roseli não entende, mas você está com fome? Como entrou aqui? Não vê que não pode ficar aqui. Mas você precisa ver, ele pensou e não disse, só apontou. Vou ver o que esse garoto quer: mas, tem alguém atrás da porta, quem está ai? O que quer? A mulher que estava lá dentro começa a esmurrar a porta: deixe-me sair, por favor, deixe-me sair. Quem é essa mulher, menino? Por que você veio aqui? Justo na minha porta, justo hoje que queria sentar e ver a novela, entorpecer-me com o ópio coletivo, inebriar a minha dor e fingir que tenho o corpo que quero, a casa que quero, o homem que quero. A mulher não parava de bater. Tudo era barulho, o menino estava estático, Roseli forçava a maçaneta desesperadamente para libertar aquela mulher, quando ela começou: esse menino ai é meu filho, foi expulso de casa, sabe ler escrever e fazer cálculos. Inventou um super programa de internet para a empresa do pai, mas não estava perfeito. O pai dele perdeu tudo, me trancou aqui e ele me achou. Não sei como, estava na rua, mas me achou. O que é achar? Por que as crianças têm uma conexão tão grande com suas mães, mesmo sabendo que elas exigem mais do que podem dar, querem mais do que sonhamos conseguir. Minha mãe sempre me odiou, chegava tarde em casa do serviço e não tinha tempo para conversar, fazer comida. Droga! Não abre. Vou ter que arrombar. O menino ss ajoelhou em frente a ela e beijou seus pés. Nisso, uma corrente de água começou a jorrar em sua cabeça. Os dois começaram a se afogar ali no corredor, quando a força da água rompeu a porta e libertou a mulher. Os três foram arremessados contra a janela e cairam do décimo andar. Um passante morreu. A vendedora de flores viu tudo e jurou que eram duas mulheres e um velho, não uma criança. Tudo isso aconteceu em São Paulo, cidade mais anjo do que a dos Anjos. Tudo isso foi observado. Tudo isso registrado por um albatroz que olhava de longe.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Cello


Enquanto ela meditava sobre o vazio de sua vida, o som do violoncelo (mais conhecido intimamente como cello), invadiu a sua vida e preencheu alguns buracos cor de sangue. Parece que a cada nota, sinto-me mais engrandecida, elevada, pois ele fala de minhas dores e transpõe o meu status de mortal para outra tonalidade, uma tonalidade atemporal e metafísica. Suas mãos são fortes e, com uma paixão inigualável, agarra o arco e risca o dó, subindo para o sol e ré, respectivamente. Ela mirava aquele instrumentista maravilhosamente absorto pela música, unificado ao universo, unilateral, único, enquanto um misto de aromas mel e flores silvestres envolviam o jovem moço enquanto tocava. Mesmo com luzes escarlates e bordos envolvendo seus longos dedos, o que lhe dava um ar de pecado proibido, sua presença é divina, um céu que se desprendeu do paraíso e veio fazer sua morada na terra, dentre os homens, dentre os pecadores, dentre o lixo, dentre os ratos e as baratas. Como eu gostaria de tocar esse moço e sentir a maciez de seu toque, será que suas mãoes podem reproduzir em mim tais sons, será que a maciez do seu corpo pode ser comparada ao veludo desses sons? Ela então, aproximou-se dele, e como um disco quebrado, ele parou de tocar, mirou seus olhos azuis como o fogo e disse: Quem és tu? O que queres? O que devo dizer para essa divina divindade? Divino, divino é seu som. O que faço? Vou arrancar seu cello, vou tocar seus lábios. Ela pegou suavemente o cello de suas mãos e beijou seus lábios. O moço, então, vomitou mel e flores em sua boca, e ela começou a levitar. Ele chorou ratos e baratas ao ver que seu amado instrumento estava sendo transformado em uma árvore cujos frutos eram maçãs podres. O que está acontecendo comigo? Por que estou subindo? Mas o céu é tão lindo, quero tocar o sol, será que chego. Ela então, foi totalmente carbonizada pelos raios solares. Já o violoncelista chora a falta de seu companheiro e lamenta, lamenta muito a falta daquela que o amou. E o amor é tão piegas, né?

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Imaginário do Real


Enquanto andava pelas ruas do mais imaginário do real, descobri uma mancha de gordura. Parecia uma mistura de óleo de cozinha e fuligem, algo como os nossos olhos quando embreagados de sonhos, ou embaçados por alguma cena de violência. Violência? Desse ponto verde, ou seria preto? Desculpem o lapso de memória, mas não me recordo a cor do objeto não identificado que apareceu na esquina do Imaginário, logo após o Simbólico. Mas, qual seria o ponto a ser tratado em tamanha falta de cabimento? Sim, a violência, agora recordo-me. Desse nojo mumificado em gel, saiu uma arma. Ela era até que bonitinha, tinha o cabo de metal, e as balas eram de pratas. Êeeeeeee, clichêzão, einh? Não sabe falar de armas não fala. Tudo bem, tudo bem. Onde parei? Recordo-me, da mancha de gordura. Não!! Da arma. Mas, dissestes que esse é um tremendo de um jargão. Clichê! Deve ter lido muito histórinhas de lobisomem. ou de vampiro, ou de heróis. Todas essas coisas que a máquina dos sonhos reproduz nos filmes. Se não posso falar de armas, falarei do sangue: esse óleo, com fuligem transmuta-se em sangue e toma conta da esquina. Crianças choram, cachorros róem suas prórpias patas e adultos começam a lamber uns aos outros. Enquanto isso, uma nuvem de ácido aproxima-se de um sol de mercúrio, criando uma cena fantástica, todos os seres fundem-se em uma massa esverdeada, as crianças ganham patas de cachorros, os adultos torna-se um misto de gotas de chuva ácida com braços de bebês. O mundo se encerra em uma grande bolha de sabão. Que é isso? Patético. Não sei o por quê você não gostou? Acha que sua vida tem sentido? Acha que estão se importando se seu estômago dói de fome, ou seu coração palpita de amor? Tudo é sangue e essa é a única realidade nesse mundo imaginário. Talvez se fizesse algo. Nada. Os seres amorfos gritam, e do meio de seu pavor sai um canto: A Nona Sinfonia de Beethoven.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007


"Queen who tittered in the face of death, unable to imagine/ The meaning of flod tide"

Estava sozinha no tempo e sozinha no mundo, quando uma nuvem cinza desprendeu-se do céu e caiu bem no centro da 23 de Maio. Todos ficaram absmados por verem aquela pobre coitada ali agonizando. Na verdade, todos estavam ocupados demais para parar, ocupados demais para escutarem suas histórias, ocupados demais para verem que vindo de tão longe ela poderia estar com fome. Fome?? Não estou com fome, não. O regime deixou-me pálida, já não consigo alimentar-me de sonhos e de criações, tudo que faço é movimentar-me de um lado ao outro sem vontade, sem razão, sem vazão. Sou composta de 90% de ferro nas calçadas, e 100% de ferro na alma. Mas, por que você quer me ouvir? Sua narradora sem escrúpulos que escreve sem cuidado, erra a gramática e tem uma vida tão sem graça quanto os filmes da sessão da tarde. Sim, estou falando contra você que fica ai do outro lado do computador e não faz nada. Tens medo da chuva, do desemprego, da solidão, mas não faz nada. Já dinamitaram a Ilha de Manhattan e você não fez nada. Quando será que vai fazer? Até quando vai aguentar essa dor que não passa, essa infertilidade improdutiva, esse suspiro de saudades. Até quando aguentará essa parálise que destrói a beleza? Beleza?! A nuvem continuou a descer até penetrar nos bueiros da cidade, essa cidade de São Paulo, cidade de frio e calor, chuva e sol, homem e mulher, tudo encadeado, tudo separado, tudo sem teto e sem cobertor. Até quando vou ter que aguentar o mal cheiro, os gritos e o sangue? O sangue, o sangue, o sangue, o sangue... quer um pouco mais, as fezes, a urina, as baratas, os ratos, tudo isso é São Paulo... tudo isso é a morte. Tudo isso é a dor. E dá para ter beleza, e dá para ter amor? Não dá! Não tem esperança! Não tem beleza, o resíduo que resta e o raspar do roedor na roliça roldana... que me engole, que te engole. E essa insuportável que não para de escrever.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Universo


A garota saiu mais cedo do serviço, precisava chegar cedo. Cedo aonde? Precisava descansar? Por quê? Precisava viver. Qual é o motivo? Precisava ser feliz. Mais essa agora! Quem inventou isso. Mitos são inventados para fazer o mundo cambalear no universo e, como um cão sem dono no asfalto, repousar a sombra da lua que cobre o sol. Milhões e milhões de universos, galáxias, planetas, e eu aqui nessa terra? Com subdesenvolvimento, com hipocrisia, com dor e doença. Com feto e fúria. Sem amor e carinho. A desunião faz parte. Parte do que mesmo? Corre para pegar o ônibus que vai para o Pq. Dom Pedro II. Já estou atrasada. Para que mesmo? Não lembrava, as sombras das pessoas que habitavam os assentos, e a sombra dos indivíduos que estavam de pé fazia com que todos parecessem uma pintura impressionistas. Manchas, gotas, pingos, supérfluos, inquietos e infelizes. Por que eles tinham de estar aqui? Precisavam estar em um outro lugar, viver uma nova vida, saber o gosto bom de um livro. E livro lá se come. Come nada! Por que precisamos dele então. Ah, vagou um assento. Ufa, que bom sentar um pouco, mas eu não deveria ceder meu lugar para o senhor que está parado ai do lado. Quer sentar, fica tranqüila. Tá bom. Então, está tudo acontecendo, a história do universo não é como conhecemos, deve haver outros planos, outras dimensões, outras camadas de energia que ultrapassam esses míseros átomos que nos ensinaram. Ah, tá bom. Ah, para de viajar. Putz, o trânsito tá paradaço. Queria um chocolate para sentir o gosto amargo da vida. Que vida é essa? Essa viagem, essa coisa absurda. Nossa, um leão marinho, ele está cruzando a Consolação. Que ele quer aqui? Ele é até que bonitinho. Como ele está em frente à igreja despedaçada pela reforma, vai ver que ele apareceu para nos lembrar da existência das coisas boas. Mas o que é bom mesmo? Como definir a essência de uma coisa tão vaga? O leão vai embora, vou chamá-lo de Shakespeare: um ser que é e não é ao mesmo tempo. Uma perfídia sem ser mulher. Logo mais apareceu um rinoceronte na frente do teatro municipal. Que coisa macabra. Esse nos lembra da cultura, e como é chato viver sem as notas repetitivas de Mozart, Chopin... Nossa, a esse darei o nome de Ludwig. Gostei. E por último, em frente à faculdade de direito, tem um minúsculo rato. Sujo, preto, desbotado. Repugnante, desprezível e mau cheiroso. Vai embora que você me enoja. Que bom. O terminal não está tão cheio. A moça desembarca no ônibus de trás. Nem vi o nome desse. Ela vai embora, sem notar que, nas costas, um começo de rabo estava nascendo. Um rabo fino e nojento.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Pequena Rafaela




Enquanto olhava o movimento medonho da Avenida Rebouças, a moça de cabelos compridos pensava em sua filha. A pequena Rafaela já estava com um ano e meio, já ela, no auge de sua experiência, gozava trinta e sete anos de vida. Bem vividos, curti muito antes de ter os meus filhos! Ela falava para uma moça que sentava ao seu lado no ônibus.

A menina, com dezessete anos e grávida de seu namorado, havia perdido mais de quatro horas de serviço para poder ir ao Hospital das Clínicas fazer seus exames de rotina. Eles vão me descontar essas horas, mas depois compenso trabalhando mais.

A pequena Rafaela não consegue se aquietar no banco. Ela queria brincar, para isso havia sua tia, que ia de um lugar ao outro com ela nos braços, e cantava: Com quem será, com quem será, com quem será que a Rafaela vai casar? Vai depender, vai depender, vai depender se o Luiz vai querer. Quem é Luiz? Francamente, não sei.

Sincronicidades múltiplas começam a acontecer: o barulho da criança chorando, o trânsito quente sendo dominado pela presença ausente de um inseto que parte para sua hibernação, o livro que não para de falar daquelas mulheres de Cabul, as moças suando à luz do resto de luz que cobriu o dia. Essas multiplicidades descontentes entram no fluxo do sonho e desgastam a falta de coração.

Será que a pequena Rafaela sabia para aonde estava indo quando brincava de "Cadê o nenê?" com aquela moça estranha a sua frente: ela tem um vestido vermelho indiano e lê um livro de capa azul. A moça está incomodada, quer ler seu livro, quer prestar atenção na conversa, quer entender o mundo, mas esse, toda vez que ela o entende, muda, se fragmenta e não se reconstrói.

O ônibus estanca na travessa da Paulista, e as moças se calam. O que resta são os gritos de um moço para que o motorista abra as portas. Milhares de pessoas caminham, apressadas, sem paciência. Horas depois, a do vestido indiano desce na rua Direita, sobe até a Praça da Sé, toma o Terminal Vila Prudente. Justamente, depois de um dia exaustivo, em que os cacos de sol feriram os seus olhos, uma chuva forte cobre seu rosto. O momento de beleza e epifania, aquele que podería mudar o curso de uma vida, é adiado. Nada.

A moça está em casa e escreve uma postagem no seu blog. Nesse momento ela se pergunta onde estaria a pequena Rafaela. Seria essa menina um crime? Uma solução?

Realmente não sei. Somente que a cor negra de sua pele, juntamente com a cor azul dos olhos de sua tia, juntamente com a cor branca da menina grávida, mais a cor laranja do sol, mais a cor vermelha do vestido, mais a cor de ouro do amor, tudo isso, podem ser resquícios de um sonho que pode ser novamente construído, talvez como aquela flor no asfalto... Dorme Drummond.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Resíduos de Sonhos


No dia de hoje tive uma idéia: recuperar um sonho que foi esquecido já há muito tempo.
Em tempos que o esquecimento é uma constante - queremos e precisamos nos esquecer do tirano que nos visita, da dor que nos causa a exclusão, da nossa falta de liberdade, da nossa falta de direito, da nossa falta de deveres, da nossa crueldade, do nosso amor, da nossa verdade, e da nossa tão grande mentira - shwiiiiiiiiii cataploft duirrrrrr - quero e preciso lembrar-me de sonhos que podem ter feito parte de inúmeras mentes.

O impossível do meu sonho, eu quero lembrar, mas já esqueci. Por que não consigo lembrar, tsk, tsk, cataploft.

Talvez porque ainda desejo vou lembrar-me, vou recuperar um resíduo de sonho que já não tem lugar em uma vida vazia que se desfaz e se reconstrói em momentos de pálido prazer. Prazer do que? Viver! Viver o que? O que dói, o que não nos faz esquecer que a história dói, e mesmo assim, pode haver o sorriso. O sorriso é um crime, e dos piores. Matar? Morremos todos os dias. Mentir? Vivemos uma ideologia. Cantar? A música desafinou, não há mais instrumentos.

Mas vou recuperar esse resíduo de sonho, talvez com uma ajudinha... ainda vou. Como "Clair de Lune" procura a "Sonata ao Luar" e a "Fantasia Improviso", como o "Revolucionário" busca a guerra.