A raiva escorreu da boca da mulher quando parou no meio da Avenida Paulista, bem na época de Natal, e viu um palco montado. No meio daquela barulheira horrorosa, a pequena orquestra, acompanhada por três tenores medíocres, tocavam "Granada". É patética a cena: há uma farmácia atrás de mim, na minha frente, uma fileira de pessoas correndo: vejo um homem gordinho passando com uma parrafa de vinho, depois um velho de cabelos longos e um maço de flores coloridas, um grupinho de adolecentes góticos vestidos de preto e cantando a melodia, uma garota que estudou comigo no colegial, tudo encadeado no fluxo do movimento. Mas não acabou, atrás dessa fileira está a de carros, ônibus, taxis, caminhões e microônibus, todos lotatos de pessoas e sonhos de consumo, de amor, de liberdade. Atrás dessa fileira, havia outra, empanturrada de gente observando o palco: eles conversavam, riam e pareciam felizes, provavelmente zombavam de sua desgraça, como diria o ditado, não é possível ser feliz e sábio. Acima dessa massa multiforme colorida, estava o palco: esqueça todas as cenas de orquestra que você já viu na vida, essa é diferente! Os músicos zombam de seus erros, não se concentram e desafinam sem se preocuparem. Que absurdo. Só posso ficar com raiva dessa pouca vergonha. O que, o que você quer? Um velhinho estava ao seu lado perguntando se ela gostava de música napolitana. Não gosto, gosto de boa música. Isso é ruído, esse monte de veículos passando, esse povo conversando, isso não é maneira de se comportar em concerto. Isso não é jeito! O velhinho transmutou-se em um lindo cavalo e começou a correr para lá e para cá. Os carros sumiram, e uma mancha preta, como de gordura, sugou todos que estavam ali. Só sobrou ela ali: nada de pessoas, nada de carros, só ela e o cavalo. Ele tomou a garota raivosa em seus ombros e a levou para Terra do Nunca. E lá, viveram felizes para sempre. Talvez esse seja um conto de Natal, talvez esse seja o conto mais absurdo que ouvirás, ou lerás em sua vida. Olhe, por um instante, o absurdo de sua vida. Novamente, indago, porque não há mais necessidade de esconder-me por trás de uma máscara literária, o porquê não fazemos nada? Por que vivemos essa vida sonho pensando que tudo acaba bem sempre? Você pode achar que ela está feliz, com seu cavalo, na Terra do Nunca... a realidade é que ela desapontou um homem cansando, empurrou seu corpo até em casa, comeu, dormiu e sonhou. Uma hora dessas, deve estar almoçando ou tomando café, odiando o que fizeram com sua música, esperando que o mundo, São Paulo e a Avenida Paulista melhorem. A verdade está no MASP, mais precisamente, nas telas roubadas.
sábado, 22 de dezembro de 2007
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