sexta-feira, 9 de março de 2007

Pequena Rafaela




Enquanto olhava o movimento medonho da Avenida Rebouças, a moça de cabelos compridos pensava em sua filha. A pequena Rafaela já estava com um ano e meio, já ela, no auge de sua experiência, gozava trinta e sete anos de vida. Bem vividos, curti muito antes de ter os meus filhos! Ela falava para uma moça que sentava ao seu lado no ônibus.

A menina, com dezessete anos e grávida de seu namorado, havia perdido mais de quatro horas de serviço para poder ir ao Hospital das Clínicas fazer seus exames de rotina. Eles vão me descontar essas horas, mas depois compenso trabalhando mais.

A pequena Rafaela não consegue se aquietar no banco. Ela queria brincar, para isso havia sua tia, que ia de um lugar ao outro com ela nos braços, e cantava: Com quem será, com quem será, com quem será que a Rafaela vai casar? Vai depender, vai depender, vai depender se o Luiz vai querer. Quem é Luiz? Francamente, não sei.

Sincronicidades múltiplas começam a acontecer: o barulho da criança chorando, o trânsito quente sendo dominado pela presença ausente de um inseto que parte para sua hibernação, o livro que não para de falar daquelas mulheres de Cabul, as moças suando à luz do resto de luz que cobriu o dia. Essas multiplicidades descontentes entram no fluxo do sonho e desgastam a falta de coração.

Será que a pequena Rafaela sabia para aonde estava indo quando brincava de "Cadê o nenê?" com aquela moça estranha a sua frente: ela tem um vestido vermelho indiano e lê um livro de capa azul. A moça está incomodada, quer ler seu livro, quer prestar atenção na conversa, quer entender o mundo, mas esse, toda vez que ela o entende, muda, se fragmenta e não se reconstrói.

O ônibus estanca na travessa da Paulista, e as moças se calam. O que resta são os gritos de um moço para que o motorista abra as portas. Milhares de pessoas caminham, apressadas, sem paciência. Horas depois, a do vestido indiano desce na rua Direita, sobe até a Praça da Sé, toma o Terminal Vila Prudente. Justamente, depois de um dia exaustivo, em que os cacos de sol feriram os seus olhos, uma chuva forte cobre seu rosto. O momento de beleza e epifania, aquele que podería mudar o curso de uma vida, é adiado. Nada.

A moça está em casa e escreve uma postagem no seu blog. Nesse momento ela se pergunta onde estaria a pequena Rafaela. Seria essa menina um crime? Uma solução?

Realmente não sei. Somente que a cor negra de sua pele, juntamente com a cor azul dos olhos de sua tia, juntamente com a cor branca da menina grávida, mais a cor laranja do sol, mais a cor vermelha do vestido, mais a cor de ouro do amor, tudo isso, podem ser resquícios de um sonho que pode ser novamente construído, talvez como aquela flor no asfalto... Dorme Drummond.

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