sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Saudades da Poesia

Como um rio seco que se exauriu de tanta água, como uma bola de neve que morreu de tanto frio, como uma pipa que caiu por causa de seu medo de altura, estou aqui, sem falar, sem cantar, sem tocar, sem sorrir. Toda a vida se resume a uma imagem: o rato. Dizem, os chineses, que esse é o seu ano: não haverá guerras, será um período tranqüilo, de decisões pacíficas, de mundo pacífico, mas será que alguém é pacifico? Vejamos: Ronaldo é um moço belo, com todos os atribuitos de sua idade. Beleza, inteligência e astúcia são predicativos que o definem por dentro e por fora. Pois bem, outro dia quando estava em frente à Faculdade de Direito, bem no Largo São Francisco, lugar do qual se orgulha muito por sinal, é apaixonado pela carreira escolhida. Pois bem, onde estava? Já me esqueci? Perdoe-me! São os lapsos de uma Era em que a condição de tempo torna-se arquetípica. Estava lá ele em frente à estranha estátua do casal de beijando quando alguém chega para ele e pede:
Me dá um cigarro
Deixa disso camarada,
Dizem todos os dias,
Da nação brasileira.
Ronaldo desconfiou pakas porque conhecia o poema de Oswald. Mas por que esse camarada quer que eu lhe dê um cigarro citando poemas? O homem era uma mistura de tempos, mais baixo, mais gordo, mais bem arrumado, mais desleixado. Sem perfume, perfumado, enfim. Você já pode imaginar o que deu. Não? Nem eu, o aspirante a promotor não tem boa índole e começou:
Eu insulto o burguês!
O burguês-níquel, o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Não é de se espantar que nosso amigo tabagista ficou perplexo ao ouvir isso. E bem ali, ao meio dia da cidade grande, os dois começaram a perder suas tintas: enquanto Ronald via suas lindas madeixas se desfazerem, o nosso personagem ria feito um camaleão cansado de casar. Começou a desaparecer também. Agora estão ao meu lado, cantando Oswald, Mário... mas, engraçado.
Ninguém lembrou-se de Drummond. Então, vou recordar:
Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvoe dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Ronaldo não é pacífico, o chinfrim também não. O fato é que há um ódio em toda poesia, em toda a canção em toda a palavra. Os anos nunca serão tranqüilos, a humanidade é ainda torpe, todos se desfazem em busca de um nada para preencher suas vidas. Comida? Sim, se o alimento da vida é poesia, é rato e lama, dê-me o excesso de tudo, que o apetite adoeçe e morre.

2 comentários:

Anônimo disse...

Eu também quero o excesso de tudo! Muito lindo esse texto lírico e prosaico ao mesmo tempo. O cotidiano que não é cotidiano, o poético que não é poético. Ou é demais, excessivamente. Os extremos que se tocam.

The tone disse...

Que medo!
Mas medo bom... a mistura poesia e vida e ontem e hoje foi linda. Acho que me fez gostar mais de poesia do que antes. O final.. super forte!
Esse texto me arrepiou... ^^