sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Felicidade número 1

A Deusa estava manchada de sangue.
Ao seu lado direito, uma circunferência cortada ao meio e uma folha seca faziam as vezes da mão carinhosa de um guerreiro. Atrás, a cortina vinho mancha seus sonhos. O céu repleto de nuvens inebria sua mente, e o mar: amar?
Lembranças, memórias e recordações de um vento, que sussurra seu canto cor tarântula para longe, cortaram a sua cabeça.
Como um toso na galeria da história, a Deusa urge para que alguém a acorde e mostre o absurdo de seu sonho, mas eu, sozinha na América, contemplo sua dor, fundo minha dor à dor algodão doce do mundo.
A moça acorda e diz: Esse é o dia mais feliz de minha vida!
Sua mãe já havia preparado o café da manhã: frutas, queijos e pães: fibra, proteína e carboidrato, todos os ingredientes necessários para um dia de emoções, lágrimas e suor. A mãe urde para que não se atrase, pois havia horário marcado no salão de beleza, ela, em contrapartida, olha para o teto, vê o branco de parede e lembra a brancura de seu vestido. Não só de seu vestido, mas de sua vestimenta diária no hospital. Ontem, uma criança havia morrido em suas mãos: um tanque cheio de água suja caiu em sua pobre cabeçinha e arrebentou a caixa craniana: ela ainda chorava por sua mãe, banhada pelo sangue. Ela ainda chorava pelo menino, banhado de sangue. Ela ainda chorava pelo uniforme, banhado de sangue.
Em passo de tartaruga, a moça apanha a rosa vermelha deixada no chão com um bilhetinho branco:
“Vou fazer de você a mulher mais feliz do mundo!”
A moça sorri, acaricia a rosa e desce as escadas de mármore da casa. Chega ao ponto mais baixo, vira a direita e, onde há uma cortina cor de vinho, e espia o jardim. As folhas das árvores estão secas, o vento está bastante gelado e o jardineiro não veio. Está tudo muito sujo, mas ela sorri assim mesmo. Chegando a grande cozinha, observa sua mãe: uma mulher de cinqüenta e oito anos, com uma cabeleira vasta, tingida de loiro, suas pernas fortes e musculosas delineadas pela musculação lembram as de um atleta, sua barriga é flácida, mas isso por causa do regime que fazia diariamente.
Bom dia, Atena. Hoje é o dia mais feliz de sua vida!
A moça sorri. A moça agarra um pêssego e o cheira. A moça para e pensa, você bem que poderia ter-me dado o nome de Afrodite, assim eu teria como enlouquecer o Ulisses na cama hoje.
Sentando na cadeira de madeira com forro de mármore, sentando-se à mesa na sua frente e bebendo vagarosamente o suco de maçã e morango, pare com besteiras, menina. O Ulisses fica excitado só de vê-la com aquele uniforme horroroso, manchado de sangue.
A gatinha roça nos pés da moça que a coloca em seu colo. Sua brancura é macia, sua coleira anti-pulgas brilha quando um raio de sol rompe as nuvens, esbarra no vidro da cozinha e atinge o pescoço da gatinha. Branca e vermelha. Sua gatinha! Nini! Sai de cima, não posso ficar cheia de pelos hoje. Vem, vem, sua mãe pega a gatinha e a acaricia. A gatinha gostosa e gorda dome como quem sorri.
Gostoso esse queijo. Esse pêssego então, divino. Quero mais pão de forma. Pare de comer filha, você não quer que o Ulisses case com uma gorda desengonçada. Claro que não. Sai da mesa, volta para o quarto e coloca um vestido largo com flores brancas. Primeiro vê sua imagem no espelho, é magra, mas tem imperfeições. Será que o Ulisses repara? Será que ele pensa em outra quando fazem amor? Não pensa mais nisso. Coloque a roupa e vai ser feliz.
Desce as escadas, beija sua mãe com um selinho nos lábios. Entra em seu Celta prata. Cruza a Rebouças e chega ao Salão.
Chegou a felizarda!
O cabeleireiro a beija, a manicure a beija e a depiladora a beija. Primeiro a depilação. Tira a roupa e vai deitando debruço. O procedimento é dolorido, mas tudo é aliviado pela brisa do ar condicionado que deixa mais relaxada.
Depois, a massagem. Fecha os olhos e pensa que é o Ulisses, o massagista a deixa tranqüila, suas mãos têm um óleo com aroma de pêssego. A grande hora chega: o vestido, o cabelo e o buquê. O cabeleireiro capricha, mas ela quer que ele deixe tudo solto, apenas com uma faixa na testa e um laço na parte de trás: ele faz duas tranças, prende para trás e prende com um fininho laço branco. Olhando-se no espelho, vê toda a vida que quer:
Serei feliz:
Filhos, gêmeos de preferência. Uma casa no Jardim Europa, um carro na garagem, amor todas as noites e um consultório pediátrico na Rebouças. Tudo o que queria: o que mais poderia querer? Sim, como não, uma casa de veraneio na Ilha Bela.
Estava bela, com seus cabelos de deusa, com seu vestido grego e com seu buque de rosas vermelhas. Entra no carro, seu pai sorri: você está linda e radiante.
O motorista os leva até a igreja onde tudo acontecerá. Ela segura forte a mão de seu pai que apenas sorri. Fique tranqüila. Um menino de rua olha bem fundo nos seus olhos ao pedir um troco no farol e exclama: Não importa, a senhora está uma gatinha.
A igreja da Cruz torta a espera, foi reformada. Sobe as escadas, e ao som de Ave Maria dá os primeiros passos no carpete vinho. Há folhas secas pelo caminho. Ulisses está lindo. O céu está lindo, a brisa está linda.
Uma das pilastras se desprende do teto, ela não percebe. Cai: sua cabeça é decepada, sai rolando. Ulisses sai correndo, não sabe qual das duas partes deve acariciar e se senta chorando ao lado da parte superior de seu corpo. Seus olhos estão fechados, seus lábios encerram um sorriso e seus cabelos permanecem intactos. Chora, chora e chora.
Lágrimas, suor e sangue, bem demarcado no seu olho direito.

2 comentários:

The tone disse...

Que delícia de texto...
Nem vi as linhas passarem. Foi como Kronos devorando cada palavra, voraz, temeroso, posto que elas poderiam ser minha perdição.
A Deusa é linda. Concordo com todos. Pobre Ulisses. Será que aguenta o fardo olímpico? Seja taõ astuto quanto for, ele é apenas um homem. Zeus tenha piedade dele.
E nós também!

Renato Torres disse...

olá viviane,

há mesmo uma atmosfera que sonha (e isso responde a pergunta que fiz em minha resposta ao teu comentário na página branca) latente em teu não-lugar, e que "esconde enquanto se mostra", à leste de toda verdade absoluta, apenas a luta intensa das palavras por significado. penso na escolha tua de escrever em inglês, e o contraponto deste único texto em português nesta página... há um ganho em sonoridade evidente em algo como "absurdity" que não passa despercebido. sem dúvida, tens pulsação, paixão, e surpresa no que escreves.

abraços,

r